poema de árvore I
quero a sutileza das árvores o desaparecimento do que não é arte em mim
o distanciamento das coisas que não são da essência dos cânticos
quero a delicadeza dos ramos
o esquecimento do que não é apenas folha em mim
o silêncio das palavras quando não são como
o brilho dos olhos
quero a correnteza e a imagem que só vejo no momento de cantar
​
​
poema: consuelo de paula
tema instrumental “árvore passarinheira”:
joão arruda e jequitibá
voz: consuelo de paula
viola: joão arruda


poema: consuelo de paula
tema instrumental “gêneses”: joão arruda
voz: consuelo de paula
viola: joão arruda
poema de árvore II
​
olha o tempo passando atrás das primeiras árvores olha o tempo saltando na selva, no matagal
acima dos telhados das primeiras paisagens
no antes
no início
no breu
e logo adiante uma planta chorona despenca seus cachos de celulose e música
entre a neblina
fumaça divina de luz e sombra
no começo
no oco dos primeiros dias
e antes que a floresta termine
eis que surge uma árvore gigante
generosa
frondosa
uma entidade na beira do vale
entre o chão e a névoa
entre o cercado e os flocos etéreos de vapor
no meio
no vão
no branco
no claro, na passagem, na ponte de ar que anuncia a grande terra
olha o tempo passando depois das últimas folhas
olha o tempo saltando nas curvas dos montes
acima dos pelos das derradeiras paisagens
no depois
no final
na luz
e mais adiante ainda
uma nuvem brincalhona cria pássaros de algodão e poesia
entre o azul
miragem divina de sopro e verbo
no espaço
no vasto dos últimos dias
e antes que a vida desapareça
surge uma semente invisível
uma estrela cadente
um pingo
que nas voltas do mundo
cai sobre o barro
sobre o barro do chão
​
poema de árvore III
meu corpo agora é um tronco comprido úmido, vívido e fértil
abrigo de algas, líquens e seres invisíveis ele é o próprio caminho
o barro e a madeira
entre seus sulcos passam rios, ventos e memórias
a plenitude das rugas
a beleza generosa da epiderme
nele posso ver nossos momentos
posso sentir os movimentos do mundo meu corpo agora é uma estrada bordada de verde
coberta de teias e rendas molhadas
uma árvore,
um chão
um caule apontado pro infinito
uma força construída com luta diária
um longo ser vivo assustadoramente bonito
e no alto do tronco
o mistério da vida
poema: Consuelo de Paula


a hora azul
​
existe um momento do dia em que tudo é azul
e deve ser neste instante
que o mundo transcende
deve ser neste segundo que um lado encontra o outro
uma pequena fração do tempo quando o mistério parece querer se revelar
mas, ele segue sua função de ser oculto e se veste de azul
para o nosso susto e encanto
para que nossa paixão continue
i n f i n i t a
poema: Consuelo de Paula
lagoa redonda
um dia serei paisagem
na linha entre o rio e o mar
na foto de uma miragem
eu, o boi e o nosso lugar
um dia estarei na passagem
no encontro entre o doce e o sal
no centro da terceira margem
eu e o boi debaixo do sol
na barra do mundo serei travessia
na hora mais linda, terei companhia
na beira do céu, na beira do mar
no vasto do mundo, na calmaria
na beira da terra, na beira do ar
no som do silêncio, sem companhia
um dia terei coragem
serei flor desaparecida no meio de uma imagem
absurda e linda da vida
um dia serei linguagem
um peixe, um boi, uma fita
um fio, um barco-mensagem
a dizer que a vida é bonita
meu corpo, a terra e a negra boiada
a carne de um deus azul
meu rosto, a areia e o branco da nuvem na alma de um deus azul
e no instante da mesma viagem
na sombra de algum lugar
eu no quadro da sua filmagem
no encontro entre o rio e o mar
como uma flor nascida do rio
boiando na pele da água
entre o tudo, o nada, entre o fim e o princípio
nas voltas da lagoa redonda
no redondo do mundo no lugar
onde tudo é uma coisa só lá onde não se sabe mais quem é o boi, a terra o ar quem é homem, céu ou lugar
onde tudo desaparece e reaparece num imenso quadro divino de pura arte
como uma flor nascida do rio
sigo aboiando, parido do umbigo do rio
da onda do mar, do braço da terra
do mugido do boi livre e selvagem
da sombra da ave que passa sigo
como um peixe-embarcação
um corpo num momento de encontro com a alma do mundo
poema: Consuelo de Paula

sopro
​
somente a luz fugaz de uma vela
o tempo de um samba
uma passagem
uma tela de cinema onde se vê o dentro
a lente da máquina ao contrário
meus olhos passam a ser a luz que emana da vela acesa
vejo através dela
e não sei porque, ela sempre mostra o calmo
deve ser assim que os monges se sentem nas meditações
e eu, no centro do chão do arvoredo
somente a noite fugaz numa tela
no tempo de um sonho
numa passagem numa tela de cinema onde se vê o dentro
construo a minha casa
​
poema: Consuelo de Paula
